Reportagem: organizar a rotina de alfabetização
Aos 5 ou 6 anos de idade, as crianças percebem mais claramente que existem outras formas de representar o mundo sem ser por meio de desenhos cheios de traços e cor. Descobrem, enfim, a presença e a importância da escrita, que permite a todos comunicar ideias e opiniões por meio, por exemplo, de cartas, bilhetes, notícias e poemas. Mas, para que cada um dos pequenos dê esse grande salto no aprendizado, é preciso que a atuação do professor no Ensino Fundamental de nove anos esteja ajustada a esse propósito.
O passo inicial é definir com antecedência as atividades que vão fazer do ano letivo um encadeamento de descobertas, cada uma delas mais desafiante que a outra. "O educador precisa ter uma visão geral do trabalho para prever em que ritmo as propostas de leitura e escrita vão se aprofundar ao longo do período", explica a professora argentina Mirta Torres, especialista em didática da leitura e da escrita.
Segundo Mirta, nesse planejamento é importante considerar que cada criança já está em processo de alfabetização. "Antes de irem para a escola, os pequenos tiveram contato com práticas de leitura e de escrita, com maior ou menor grau de espontaneidade, ao escutar os pais lerem histórias, ao folhearem livros ou ao verem adultos e outras crianças escreverem", pontua. O que muda é que na escola esse processo passa a ser intencional e sistemático, ganhando sentido e contando com a participação ativa de cada estudante.
Para chegar ao detalhamento da rotina semanal de uma classe de 1º ano, o educador precisa ter clareza de que itens devem ser combinados e com que regularidade devem ser praticados para permitir às crianças entender em que situações se lê e se escreve, para que se lê e se escreve e quem lê e escreve. "E não é necessário ter sempre novidades programadas. A continuidade dá segurança aos alunos e, associada à diversidade de assuntos, amplia o repertório deles", explica Debora Samori, pedagoga e formadora de professores do Centro de Educação e Documentação para Ação Comunitária (Cedac). Um planejamento acertado contempla três tipos de atividade.
1. Atividades permanentes
São essenciais para o processo de alfabetização. Por isso, devem ser praticadas diariamente ou com periodicidade definida e em horário destinado exclusivamente a elas. Incluem:
1. A leitura pelo professor, feita diariamente, em voz alta, caprichando na entonação para aumentar o interesse e tomando cuidado para variar os gêneros durante o ano: contos, cartas, notícias, poemas etc.
2. A leitura pelos alunos, feita em dias alternados com atividades de escrita, sempre tendo como objeto textos que eles conheçam de cor, como cantigas, parlendas, trava-línguas, textos informativos etc.
3. A escrita pelas crianças, feita em dias alternados com atividades de leitura, tendo como objeto a produção de listas de nomes de colegas, de frutas, de brinquedos etc., que podem ser escritas pelos estudantes com lápis e papel ou com letras móveis.
4. A produção de texto oral com destino escrito, feita em dias alternados com atividades de leitura, quando os alunos criam oralmente um texto e o ditam para o professor, trabalhando o comportamento escritor.
2. Sequências de atividades
São organizadas para atingir diversos objetivos didáticos relacionados ao ensino e à aprendizagem da leitura e da escrita. Necessariamente apresentam um nível progressivo de desafios. A duração varia de acordo com o conteúdo eleito. Pode levar dois meses ou chegar a quatro, sendo praticada duas ou três vezes por semana. Visam levar as crianças a construir comportamentos leitores associados a propósitos como ler para aprender, ler para comparar diferentes versões de uma mesma obra e ler para conhecer diversas obras de um mesmo gênero. Em um bimestre, pode ter como objetivo trabalhar a leitura de contos de autores variados. Em outro, pode eleger a leitura de seções de jornal para que a turma se habitue a outro tipo de texto.
3. Projetos didáticos
São formas de organização dos conteúdos escolares que contribuem para a aprendizagem da leitura e da escrita ao articular objetivos didáticos e objetivos comunicativos. A sequência de ações de um projeto culmina na elaboração de um produto final (um livro de receitas saudáveis para as merendeiras da escola, uma gravação em CD ou fita cassete com a leitura de poesias para alunos de Educação de Jovens e Adultos, um jornal de bairro a ser distribuído para a comunidade etc.). Pode durar todo um semestre e ter ou não conexão com o projeto didático proposto para o segundo semestre. No primeiro, por exemplo, os alunos ouvem a leitura de poesias e decidem quais farão parte de um livro escrito pelo professor (que atua como escriba) e ilustrado por eles. A destinação da obra deve ficar clara. Pode ser o acervo de livros da professora, a biblioteca da escola, a família das crianças ou colegas de outra turma. No segundo semestre, uma proposta poderia ser a leitura pelos alunos de poesias que sabem de memória para depois serem declamadas em público em um sarau organizado por eles, reunindo os pais, os estudantes e a comunidade.
Com base nas atividades essenciais e a frequência com que devem ser realizadas, o professor pode fazer uma programação detalhada do que vai trabalhar durante o ano (veja um exemplo no quadro abaixo). Após essa distribuição, é possível fazer agendas de 15 ou até 30 dias de aulas, dia após dia, de segunda a sexta-feira. Essa é uma etapa de grande importância no planejamento. Nela, os projetos didáticos e as sequências de atividades também são elaborados em detalhes, definindo-se justificativas, tempos de duração, materiais necessários, aprendizagens desejáveis e desenvolvimento passo a passo.
Colocar tudo no papel faz pensar na forma de realização das atividades, além de antecipar a necessidade de separação ou de compra de materiais: que livros devo ter à mão para ler aos alunos? Quais voltarei a ler ao longo do ano? Quais devo ter em maior quantidade para permitir que todos acompanhem a leitura? Como escreveremos a lista de nomes dos alunos? Como eles vão se apresentar à turma?
Outro cuidado importante é, logo nas primeiras atividades, identificar que habilidades, conhecimentos e dificuldades cada aluno traz de suas experiências de vida, seja em casa, seja na escola. "Esse é o momento de observar, tomar nota e refletir sobre a atuação de cada um em tarefas coletivas, em atividades realizadas em duplas ou trios e em momentos de trabalhos individuais, o que permitirá acompanhar a evolução dela no ano", orienta a pedagoga Debora Samori.
A classe pode ter crianças em diferentes níveis de conhecimento em relação à escrita. O professor não deve encarar isso como um problema. Cada aluno é importante e traz características que devem ser identificadas e aproveitadas. A orientação é ajustar o foco, pensar nas possibilidades de interação e troca e seguir em frente com o trabalho.
Há uma infinidade de descobertas a serem feitas por seus futuros leitores e escritores, e eles vão precisar de muitos desafios para dizer o que pensam e compreender o que leem.
Outro cuidado importante é, logo nas primeiras atividades, identificar que habilidades, conhecimentos e dificuldades cada aluno traz de suas experiências de vida, seja em casa, seja na escola. "Esse é o momento de observar, tomar nota e refletir sobre a atuação de cada um em tarefas coletivas, em atividades realizadas em duplas ou trios e em momentos de trabalhos individuais, o que permitirá acompanhar a evolução dela no ano", orienta a pedagoga Debora Samori.
A classe pode ter crianças em diferentes níveis de conhecimento em relação à escrita. O professor não deve encarar isso como um problema. Cada aluno é importante e traz características que devem ser identificadas e aproveitadas. A orientação é ajustar o foco, pensar nas possibilidades de interação e troca e seguir em frente com o trabalho.
Há uma infinidade de descobertas a serem feitas por seus futuros leitores e escritores, e eles vão precisar de muitos desafios para dizer o que pensam e compreender o que leem.
Fonte:revistaescola.abril.com.br/Clélia Cortez-Formadora do Instituto Avisa Lá-São Paulo
Beatriz Vichessi (bvichessi@fvc.org.br), de Mogi Guaçu, SP
Conquistar a escrita convencional não é uma coisa fácil para as crianças. Requer pôr em jogo saberes, testar possibilidades, confrontar hipóteses, recorrer a modelos e rever escolhas. A tarefa do alfabetizador talvez seja tão complexa quanto a delas. Mais que desafios didáticos, ele precisa garantir que ler e escrever tenha na escola o mesmo sentido que na sociedade. Para isso, necessita planejar atividades que possuam, ao mesmo tempo, duas características: função comunicativa clara e foco na aquisição do sistema, dando sentido ao objeto de ensino para os estudantes, segundo a pesquisadora argentina Delia Lerner em Ler e Escrever na Escola: O Real, o Possível e o Necessário (128 págs., Ed. Penso, tel. 0800-703-3444, 46 reais).
Essas preocupações nortearam o projeto de Elisangela Carolina Luciano, professora do 1º ano da EMEF Adirce Cenedeze Caveanha, em Mogi Guaçu, a 164 quilômetros de São Paulo. Ela orientou a elaboração de placas para o hortifrúti do bairro. O objetivo era fazer todos avançarem na escrita. No início do ano, apenas três das 23 crianças estavam alfabéticas. No fim do trabalho, todas progrediram, sem exceção. "Ao levar os estudantes a pensar sobre a grafia das palavras e se preocupar em escrever textos que teriam de ser compreendidos por leitores reais, Elisangela fez com que as reflexões deles ganhassem sentido. Não se tratava somente de escrever para a professora ler", explica Beatriz Gouveia, coordenadora de projetos do Instituto Avisa Lá e selecionadora do Prêmio Victor Civita Educador Nota 10.
Paula Stella, coordenadora pedagógica da ONG Laboratório de Educação e professora da pós-graduação em Alfabetização da Escola da Vila, em São Paulo, destaca que, embora simples, o projeto desenvolvido pela educadora é muito sofisticado. "Parece óbvio pensar que ler e escrever servem para diversas coisas. No entanto, muitos professores ficam sem saber como mostrar isso às crianças de modo interessante e realmente significativo. Elisangela conseguiu levar a escrita e a leitura para fora da escola em prol da aprendizagem dos conteúdos."
Fonte: https://revistaescola.abril.com.br/fundamental-1/alfabetizacao